terça-feira, 19 de março de 2013

A verdade



A verdade é que Inês ansiava por um olhar que se cruzasse com o dela. Seria um ato de amor por ela, consigo.

A verdade é que as dores constantes que moíam todo o seu corpo, os zumbidos que há tantos anos não a deixavam saborear o silêncio e descansar, o cansaço permanente eram sempre um mal menor relativamente à ausência de comunicação.

Onde estaria a verdade do amor de Vilela, que ela não via? Poderia esse amor transparecer através do milagre da mudança dele? Se Vilela fosse mais paciente, ponderado, dedicado, verdadeiro, entusiasmado pela vida, ela sentir-se-ia amada.
Era profunda a dor pelos beijos e abraços que não dava, pelos sorrisos calados, pelas brincadeiras que não aconteciam. 

Que sentido teria permitir a sua vida ser privada da alegria, graça, felicidade partilhadas em favor dos benefícios do hipotético percurso que ele não queria ou não conseguia fazer?

E enquanto ele não percebesse quais as diferenças entre a sua mulher e qualquer outra pessoa, não entraria nela, nem iria seduzi-la. Era evidente que para Inês a sedução seria o gosto posto em cada pequena coisa feita ao longo do dia, fazendo amor com a vida, sentindo-se vital como uma respiração. Mas, para Vilela, ela era apenas essencial na sua presença, existindo num plano muito inferior à paixão dele pelo conhecimento, pela sabedoria.

Ele, que afirmava não saber como tomar iniciativa relativamente ao encontro com ela, era ferozmente impelido a escrever e a estudar os mais infindáveis temas, alheando-se do espaço e do tempo, vivendo no mundo das reflexões, deixando-a a almoçar e a sonhar sozinha.

A verdade é que Inês queria ter um homem, que não transformasse tudo em sacrifícios: que deixasse transbordar a felicidade de estar com os outros; que não desesperasse com os pequenos problemas do dia-a-dia (essa seria a verdadeira inteligência e força); que a tocasse deliciosamente com o olhar, palavras, gestos; que lhe fizesse falta, que lhe fizesse mesmo muita falta!
A verdade é que a sua felicidade estava condenada, porque sentia-se gorda, velha, doente e apenas suspensa por um fio.

Paradoxalmente, parecia-lhe pecado viver naquela agonia, e saber dos que passam frio, fome e tortura. Via como ridícula a sua infelicidade perante isso!
Questionava-se: “O que é que eu vim fazer ao mundo?” Partilhara com alguns o prazer de aprender, da exigência, de conhecer, de saborear a arte e a terra, ajudara algumas pessoas, mas ficara afogada naquela solidão desmedida.

E Vilela, sempre absorto com algum pensamento muito elevado, não se apercebia de que ela morrera a seu lado e já só arrastava o corpo numa dança vazia, sem esperança.

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